Dizem que os fins
justificam os meios. No meu ponto de vista, os fins podem apagar um
pouco do brilhantismo do caminho. A minha preferência é por separar o
começo, o meio e o fim. Coisas segmentadas servem para facilitar o
pensamento e a digestão. Se o problema é difícil, que o dividamos em
várias partes para comê-las uma por vez.
Dona
Anna impregnou na minha memória histórias incríveis em todas as tardes
que voltava da escola e deitava minha cabeça em seu colo. Ela coçava
minhas costas. Com unhas pequenas, mas com movimentos graciosos.
Ela
chegou bem navegada, fugindo da Europa, como milhares iguais a ela. A
guerra arrasou sua consciência e marcou sua existência por inteiro. A
vida é mesmo um campo de concentração. Quando você menos espera, o gás
entra pela fechadura, você fecha os olhos e dorme para acordar no outro
dia e fazer coisas sempre parecidas.
Esta
senhora veio ao Brasil com a esperança de viver melhor, pois onde
estava as batalhas batiam na porta a qualquer hora. Na realidade, era a
morte que sempre atormentava. Explosões estouravam do lado de fora, bem
próximas. Eu enxerguei as bombas que ela viu nas histórias que eu ouvi.
Eu senti do meu jeito a febre tifóide que ela acometeu, os ratos que
comiam restos e que acabavam sendo comidos por gente que também comia
baratas.
Lembro
até hoje do cheiro de alfazema ou perfume de vó ao entrar em seu
quarto. Do seu cantinho religioso, pois assim era ela, funcionária da
igreja, fazia hóstia, cantava no coral e ainda tinha paciência para
fazer linha dura comigo e com todos os seus.
Foi
casada com um Senhor que eu nunca vi e não sei se verei. Sei que um dia
de sua vida ele levara um coice no nariz quando era jovem, mas morreu
mesmo foi de câncer. Doença dessas antigas e de tormentos atuais.
Acredito que tenha sido a vodka. Russos tomam vodka como tomam chá,
nunca vi!
Ela
chegou ao Brasil muito nova e já com duas filhas. Dona Anna era minha
protetora. Servia de escudo para eu fazer pirraça contra meus irmãos.
Juro que na base da inocência. Mal sabia eu que isso marcaria a vida dos
meus irmãos para sempre. Quando me lembro, porque já me esqueci, me
pergunto por que a vida tem dessas. De tirar e por pessoas da
existência, brincar com o que achamos certo ou errado e passar tempo
cheio de questionamentos sem respostas.
Por
essas e outras que Dona Anna me ensinou que a vida é assim. Pintar ovos
na páscoa para que ela seja celebrada, misturando mistério em jogo de
esconde-esconde no jardim. Ela foi uma senhora bem caricata. Com óculos
grandes, dentes da frente bem separados, bochechas caídas, verruga no
centro da testa e lenço na cabeça. Era também muito vaidosa, para
qualquer foto, tirava seus óculos.
Simpática,
morreu de dificuldades provocadas pelo Alzheimer, doença antiga com
preocupação corrente e que a deixou sem voz até na alma. Teve seus três
dias de luto para poder visitar todos os cantos dos céus e entes
queridos, antes de ir embora em paz.
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