sexta-feira, 26 de outubro de 2012

JANELA DO TEMPO


Daqui desta praça eu observo uma janela que antes eu já nem via. Será a velhice? Já perdi a conta de quantos anos passei por aqui e talvez de tão velho, eu fiquei careca. Lembrei de ter olhado por muitas outras frestas e buracos significantes durante toda a minha vida e delas eu sempre tentei enxergar o que ninguém conseguia. Lá do alto, lá bem no meu passado, eu estava mirando por aquela janela da casa de meus pais, um mundo totalmente diferente.

No ritmo de uma zabumba pulsante que torna meu caminhar constante como um coração vibrante a bater forte. Eu ia e vinha, pelas curvas que imaginava. Aqui, agora um velho, lembro daquela infância quase perdida. Melodia harmônica destoando numa canção que lembro, que sai do comum e me leva a mil variações e possibilidades.

Cheguei até aqui, na praça estou, olhando para aquilo que me inquieta. Essas são as possibilidades, todos os problemas resolvidos em uma só imagem, uma oportunidade do amanhã. Talvez o amanhã do ontem, o hoje. Todo resolvido. Todo explicado. Sei que talvez a maior dificuldade que se pode ter durante uma vida seja, então, no meio do turbilhão, tecer idéias serenas sobre todos, enquanto eu, por exemplo, poderia ter sido mais brando: esperar a chuva, o vento limpar o céu e me devolver com toda velocidade para a realidade.


A ignorância anestésica. De que adianta eu divagar sobre todo mundo agora? O que passou ou o que e quem ficou? No fim das contas, ao término da partida, você pode deixar no papel quase tudo o que sente sem censura, sobre todo mundo, sobre qualquer coisa. Todo brilho no olhar é uma nova oportunidade de nos acharmos no meio da confusão, um caminho por onde anda a verdade. Mesmo que seja a minha verdade.

E esse momento confuso de um senhor de idade careca, talvez sirva para eu enxergar coisas que não imaginava, que vi hoje. A escutar o que já nem ouvia. É possível se redimir de culpa, sem perder a responsabilidade. E sendo ancião, mais perto do fim, dependendo da ponta que se olhe, as coisas podem ficar mais saborosas.

A brisa vai soprar e sair, assim como deve ser, limpar meu céu. Sim, pois aos trancos e barrancos esses alísios arrastam o tempo como se nossa obrigação fosse acompanhar o rumo da maioria. Enquanto todos vivem querendo o conforto das retas, mal sabemos nós que para contornarmos os acasos do nosso mundo as curvas são necessárias.

A incerteza mora na escuridão do que há depois de logo ali. É a grande motivação para a continuação da vida. A possibilidade encontra-se no que você não pode ver ali na curva. A maior certeza continua, talvez, sendo a incerteza de que amanhã será bem melhor.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Medo da Dor (ou será o medo do medo?)

O medo de sangue nem sempre morou em mim. Minha alma é velha e quando veio para o mundo era pura deste sentimento que hoje me assola. Atualmente esta fobia se estende aos médicos, seus trabalhos, seja quais forem eles, e todo a assunto relacionado a doença e sua convalescença.

O medo foi só uma consequência. Causando pânico por qualquer emoção em conexão a médico e a possibilidade de ficar débil.

Eu era apenas um garoto de uns 3 ou 4 anos como todos os outros, tendo problemas iguais ao de todos os meninos da minha idade. Contratempos, desses de meninos. Em uma época em que tudo era possível, só bastava abrir as janelas da minha imaginação. É desde cedo que toda sensibilidade é plantada.

Na realidade, parece que eu nem saberia dizer quando isso tudo começou.

Eu tinha uma hérnia em mim. Precisava operar. Sempre perguntei que raio de doença tinha esse nome. Esta palavra feia que até o dicionário fica meio reticente em traduzir para uma linguagem que fácil entendamos.

A tarde era intensa. Dessas de corridas de bicicleta em casa, com os primos. Lembro tudo perfeitamente. Só fechar os olhos. Minha bicicleta tinha rodinhas do lado da roda traseira como apoio para eu aprender a andar sem cair. De tão rápido que eu estava naquela volta bati no vaso de plantas de casa, pois as rodinhas não me deixaram fazer a curva. Nunca pensei que o vaso poderia ser tão duro.

O guidão entrou dentro em mim. A hérnia teve que ser operada as pressas, assim como o rasgo feito. Depois da batida não lembro muita coisa. Sangue, muito sangue. Desmaio. Hospital.

Tenho certeza que os medos e as incertezas, a impureza, nossas loucuras de todo dia, a coragem e a personalidade são construídas nessa fase da infância, entre atos e desatinos. Tempo bom de fabricar as coisas sem maiores receios dos riscos. Onde prevalece a tentativa mesmo que o resultado seja sempre errado. Há graça em quase tudo.



Acordo atordoado no hospital e todo grudado em curativos que demoraram a sair, da minha vista e da minha cabeça. Minha alma foi machucada, cravada em desespero. Da cintura para baixo eu nem conseguia olhar. Tinha dores sempre que queria urinar e morria por dentro todas as vezes que tinha retorno médico.

Vendo o hoje nem dá para imaginar toda essa perturbação. Parte dela eu venci vendo o parto de minha filha. A outra metade é bem viva, aparece de tempos em tempos. Me faz ficar inerte. Vejo ela neste berço e de outro lado todo esse amontoado de emoções . Tenho esse pavor excêntrico, que embrulha o estômago, destes que poucos têm. Pessoas estranhas, receios esquisitos.
Esta fobia se desenvolveu aos poucos e muitas vezes parece maior do que eu.

As vezes é complicado voltar para trás, embora haja mais coisas boas do que ruins para contabilizar. Melhor  é sempre continuar em frente, tentando fazer um hoje alternativo. Mesmo que seja por um instante, feliz, sem qualquer tipo de dor. Na tentativa de eliminar o que te mata da melhor forma possível.

Como voltar no tempo e poder viver tudo mais intensamente e de uma forma um pouco diferente?

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Clone de um Salto!

Acordei todo injuriado. Todo suado. Tive um sonho esquisito e bem corrido. Coisa que só pode acontecer em outro mundo, lá do outro lado.

Fui parar na delegacia para falar com o delegado, tinha um encontro marcado. Não é que eu me encontrei com a safada, ali de pé, logo ao lado? Ao vê-la tive um troço, fiquei todo engasgado, mas eu não tive dúvida. Era ela, toda nua. O que fazia aqui a ladra? Quis pular no seu pescoço, torcer todo o seu corpo. Com toda essa raiva conseguiria sem muito esforço.

Eu sabia, dentro da bolsa dela estava o meu celular clonado. Perguntei para ela, quem é clone de quem aqui minha senhora? Ficou muda, a velha descarada. Clones existem aos montes, aqui e ali, eu refleti.

Os guardas ainda ficaram lá, me olhando sem piscar. Sem entender nada. Pensando o louco ser eu, de certo, ou que a dona era digna de comigo estar casada. Só poderia ser brincadeira toda essa marmelada. Ela veio para reclamar (maus tratos... me danei). Não vou pagar pensão. Isso, não.

Digo a vocês aqui presentes, ela ficou do lado da porta, inerte, com cara de gatuna esperta, fazendo charme, jogou a bolsa para o delegado. De fato, ele ficou ali também parado. Não entendeu nada, mas viu que ela queria meter a mão na grana, minha ou dele. A que vier primeiro. Delegado é abonado, que seja ele o primeiro.

Gritei bem alto: “roubou meu celular, roubou meu celular”. Segura a ladra, ladrão, guarda e delegado. Que droga, os policiais não se mexem. Sim, ela roubou meu telefone e agora o discurso é que ela queria apenas clonar. Como podem acreditar?

Se eu te pego na esquina, vou te acertar um pé na bunda, mas como te encontrei na delegacia, vou te dar um tapa na fuça. A descarada ainda ousou dizer uma calúnia, pegou um dos guardas para cristo.

No final das contas, nada de me ajudarem. Dois deles ali parados mais o delegado. Grito “assalto em Salto” e em um salto só eu passo por cima do balcão e recupero a bolsa. Quero colocar meu telefone no seu devido lugar que é no meu escutador ou no meu bolso. Isso aqui minha querida, velha sacana, safada e pervertida, é para EU falar e alguém escutar.

Pulei mesmo, peguei a bolsa e corri. Os guardas até entenderam, seguraram a moça e eu consegui fugir. Logo mais, daqui a pouco, eu volto a dormir.


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PARA CELEBRAR

Dizem que os fins justificam os meios. No meu ponto de vista, os fins podem apagar um pouco do brilhantismo do caminho. A minha preferência é por separar o começo, o meio e o fim. Coisas segmentadas servem para facilitar o pensamento e a digestão. Se o problema é difícil, que o dividamos em várias partes para comê-las uma por vez.

Dona Anna impregnou na minha memória histórias incríveis em todas as tardes que voltava da escola e deitava minha cabeça em seu colo. Ela coçava minhas costas. Com unhas pequenas, mas com movimentos graciosos.

Ela chegou bem navegada, fugindo da Europa, como milhares iguais a ela. A guerra arrasou sua consciência e marcou sua existência por inteiro. A vida é mesmo um campo de concentração. Quando você menos espera, o gás entra pela fechadura, você fecha os olhos e dorme para acordar no outro dia e fazer coisas sempre parecidas.

Esta senhora veio ao Brasil com a esperança de viver melhor, pois onde estava as batalhas batiam na porta a qualquer hora. Na realidade, era a morte que sempre atormentava. Explosões estouravam do lado de fora, bem próximas. Eu enxerguei as bombas que ela viu nas histórias que eu ouvi. Eu senti do meu jeito a febre tifóide que ela acometeu, os ratos que comiam restos e que acabavam sendo comidos por gente que também comia baratas.



Lembro até hoje do cheiro de alfazema ou perfume de vó ao entrar em seu quarto. Do seu cantinho religioso, pois assim era ela, funcionária da igreja, fazia hóstia, cantava no coral e ainda tinha paciência para fazer linha dura comigo e com todos os seus.

Foi casada com um Senhor que eu nunca vi e não sei se verei. Sei que um dia de sua vida ele levara um coice no nariz quando era jovem, mas morreu mesmo foi de câncer. Doença dessas antigas e de tormentos atuais. Acredito que tenha sido a vodka. Russos tomam vodka como tomam chá, nunca vi!

Ela chegou ao Brasil muito nova e já com duas filhas. Dona Anna era minha protetora. Servia de escudo para eu fazer pirraça contra meus irmãos. Juro que na base da inocência. Mal sabia eu que isso marcaria a vida dos meus irmãos para sempre. Quando me lembro, porque já me esqueci, me pergunto por que a vida tem dessas. De tirar e por pessoas da existência, brincar com o que achamos certo ou errado e passar tempo cheio de questionamentos sem respostas.

Por essas e outras que Dona Anna me ensinou que a vida é assim. Pintar ovos na páscoa para que ela seja celebrada, misturando mistério em jogo de esconde-esconde no jardim. Ela foi uma senhora bem caricata. Com óculos grandes, dentes da frente bem separados, bochechas caídas, verruga no centro da testa e lenço na cabeça. Era também muito vaidosa, para qualquer foto, tirava seus óculos.

Simpática, morreu de dificuldades provocadas pelo Alzheimer, doença antiga com preocupação corrente e que a deixou sem voz até na alma. Teve seus três dias de luto para poder visitar todos os cantos dos céus e entes queridos, antes de ir embora em paz.